quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Cada louco com a sua mania

Cada louco com a sua mania, dizia uma velha chupando ranho do nariz de outra velha. Ouvi esse ditado escatológico há muitos anos, ditado cuja imagem ainda reverbera nas minhas tão fatigadas retinas acho que por trazer em si uma verdade universal. Mas ele é só um pretexto para eu discutir outra coisa: a imagem. Ah, não, mais um texto sobre a cultura da imagem e blablabla? Não. Eu quero discorrer aqui sobre a imagem da palavra. E de uma palavra em específico: lambuzar. É verídica esta história. Estava eu traduzindo quando uma amiga, também tradutora\revisora, me escreve no Gtalk que acha muito esquisito a palavra 'lambuzar' ser escrita com 'z'. Cá com os meus botões, penso um pouco e aperto alguns deles do meu teclado (que nem é meu, mas da empresa, ó língua inexata!), respondo que não concordo e justifico com o argumento de que a letra 's' é muito mais furtiva e, se 'lambuzar' fosse escrito 'lambusar', daria um efeito visual mais escorregadio. Não demoro muito a acrescentar que a minha loucura é tamanha que filosofo sobre o efeito visual que uma letra causa numa palavra, então ela concorda comigo e diz que acha ótimo. É mais louco o louco ou aquele que diz que ele tem razão? Quanto a isso, ela prefere crer que é o outro. Sempre. Ah, Mário de Sá-Carneiro, pilar da ponte de tédio... Enfim, os meus dez mil pensamentos concomitantes puxam a música "Geni e o zepelim", que conhece muito bem o sentido e os efeitos da palavra 'lambuzar', seja com 's', seja com 'z' — e quem sabe até com 'x', que é uma letra doida o bastante para trazer vários fonemas no seu próprio corpo? Cada louco com a sua mania. Uns jogam pedra na Geni; outros usam, abusam, lambuzam.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Desengasgar

Eu estava numa aula de pós-graduação em Belo Horizonte, onde atualmente resido, quando a professora, sabendo que sou gaúcho, me avisou que tinha pegado fogo numa boate em Porto Alegre e 150 pessoas tinham morrido. Aquilo me pareceu muito distante e ainda brinquei com o fato de minha irmã, que mora em Porto Alegre, estar viajando, portanto eu podia ficar tranquilo. Pouco tempo depois alguns colegas consultaram seus celulares e demais dispositivos e me avisaram que o acidente não tinha sido em Porto Alegre, mas em Santa Maria. Até aí, tudo bem, ninguém de minhas relações próximas estava em Santa Maria. Eu ainda podia ficar tranquilo. Passado mais algum tempo, fomos almoçar num restaurante ali perto, com televisão. É verdade que o que os olhos não veem, o coração não sente. Meus olhos viram imagens da tragédia, aquelas dos rapazes quebrando os muros com o que tinham em mãos na tentativa de salvar alguém, quem quer que fosse. E meu coração começou a sentir. Não pude mais ficar tranquilo. Mesmo assim, tudo ainda estava distante de mim, eram apenas cogitações de rostos cujas feições me eram desconhecidas, cujas histórias não me eram familiares e das quais eu não fizera parte. Até que fui embora. Em casa, acessei meu perfil no Facebook e em pouquíssimo tempo recebi a notícia de que o Fernando Pellin, que fora meu colega durante 3 anos, no ensino médio, lá estivera. Agora morto. E foi assim, com o choque, que tentei me convencer de que aquilo não me atingiria, afinal, nos 3 anos que convivêramos, manhã a manhã numa mesma sala de aula do Colégio Notre Dame Aparecida, em Carazinho - RS, talvez tenhamos conversado umas 3 vezes, eu e ele. Mas eu não podia mais ficar tranquilo. Os rostos passaram a ter feições. E tais feições eram tristes, desconsoladas, perdidas, inconformadas. Seus donos não sabiam -- e na verdade ninguém realmente sabe -- que a vida não faz sentido. Nós é que os construímos. Por 3 anos, Fernando Pellin fez parte dos sentidos que eu construí para minha vida. E eu, que quando tinha 17 anos achava que com 23 a pessoa já era adulta, já tinha vivido alguma coisa, agora sei que isso é ilusão. A verdade é que ninguém nunca vira adulto, não importa a idade. Todos os que estavam naquela boate, tivessem 15, 18, 23, 34 ou 40 e tantos anos, eram apenas pessoas sequiosas de encontrar algum sentido neste caos. E ainda tinham um bom pedaço de ilusão. Aos poucos, fui sabendo que um amigo de uma amiga também falecera, que um ex-colega do meu irmão tinha se salvado, mas estava no hospital, que fulano e beltrano que eram não-sei-o-quê de não-sei-quem também estavam lá. Aí a realidade estapeou com a mão aberta e pesada a minha cara. Com esses golpes, minhas defesas foram cedendo e passei a me permitir sentir que o luto também era meu. Porque, mesmo que indiretamente, parte de mim morreu na boate Kiss, em Santa Maria. Eu, que me julgava inteiro e uno, agora me despeço de um pedaço de mim que se foi. E não volta mais. Nunca mais. Mas outros tantos ainda permanecem, e com eles seguirei vivendo, apesar de. Eu, que vislumbro vários projetos e possibilidades e não quero ter a consciência de que tudo isso é frágil, demasiado frágil. Eu, que todos os dias fecho o peito pra segurar o meu coração que quer crescer e crescer e crescer até ser maior que o mundo, hoje não consegui fazê-lo. Bato furiosamente nas teclas enquanto meu plexo aberto jorra estas palavras na tela do computador. Com minha mania de racionalidade, busco algum resquício de explicação, alguma palavra que possa diminuir os trôpegos soluços, e já quase sem fôlego lembro-me duma grande mãe. Quiçá sirvam as palavras, as minhas, as dela ou de quem forem, como alento às mães e pais e filhos e amigos e conhecidos e desconhecidos que ficaram, pois somos todos humanos e interligados por um tênue fio sem nome. Sim, Clarice [Lispector], é preciso que perdoemos Deus.