segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Um afeto passado a limpo

Ela era rígida, ríspida e rigorosa, além de velha. Pudera, tinha sido professora do meu pai. Era mesmo rabugenta, até. Mas dominava como ninguém aquelas vinte e tantas, quiçá trinta crianças ansiosas pela hora de correr e brincar. Era boa profissional, mesmo velha mantinha-se ereta e enérgica. E ensinava-nos a arte de combinar números e fazer contas, a arte de combinar palavras e fazer textos. E líamos, e escrevíamos, e filosofávamos sobre a vida. A escola era de freiras, então também rezávamos e aprendíamos a temer a Deus e obedecer a ordens. Nem todos, é claro. Há sempre aqueles que não aceitam enquadrar-se nos modelos impostos e se rebelam. Eram esses que mais despertavam a fúria daquela professora, cujo nome, Cid Sana, aliterava e assustava aquelas crianças insanas. Mas não eu. Eu era um menino tímido, curioso e encantado com o conhecimento. Assustava-me, isso sim, e muito, mas não fazia nada que pudesse provocar desgosto numa figura de autoridade. Um livro me fascinava mais do que qualquer outro objeto sagrado, mais mesmo do que qualquer outro ser humano. E a arte de obedecer, eu muito conhecia, embora não me enquadrasse naquele mundo tão sufocante – o que só viria a descobrir anos mais tarde. O sonho de consumo de toda professora. Além do mais, naquela época eu me encantava com quem detivesse conhecimento, especialmente se fosse um que eu não possuísse; ainda hoje me encanto. Mas agora já não tenho tanto medo de desobedecer ou contrariar, já não sofro culpa e angústia por horas ou dias por ter desagradado aquela que durante todas as manhãs da minha semana eu transferia como a minha mãe. Uma mãe que, ao contrário da minha de fato, ria pouco. Uma mãe que, como a minha, exigia muito. E não costumava dar colheres de chá para os seus pupilos. Já disse e repito, era severa, sentenciava repreensões ao mínimo desvio da conduta esperada. E não era justa. Como vim a perceber com os anos de vida, é comum que essas pessoas amargas elejam uns e outros de quem muito gostam e para esses poucos demonstrem o seu afeto. Para aquela professora, eu era um deles. E achava que bem merecia, pois era obediente, esforçado, estudioso. O aluno exemplar. Decidi ser assim logo no começo do ano letivo. Não lembro muito bem o motivo, se não tinha ainda comprado um caderno ou se o tinha esquecido em casa, mas se deu que copiei um exercício num pequeno bloco de notas, com a promessa de passar a limpo depois. Porém não o fiz logo de cara. E ela, a temida professora, cobrou a tarefa, acho que logo no dia seguinte. Respondi no auge da minha inocência que não tivera tempo, ao que ela tonitruou a sua voz cínica e irônica em resposta, dizendo que claro, eu era uma pessoa muito ocupada e precisava trabalhar o dia inteiro. Foi aí que percebi que o dever deveria vir primeiro. Somei isso aos dizeres do meu avô, que sempre quando lembro cometo um ato falho. Dizia ele: “Primeiro o dever, depois a diversão”; e eu sempre penso: “Primeiro o dever, depois a obrigação”. A tarde que passei brincando e não passei a limpo o exercício vem me custando uma vida inteira de ócio e prazer. Porém não foi de todo ruim. Nunca demorei muito para conquistar confiança e admiração de colegas e professores, depois colegas e chefes. E fiz das tripas coração para sustentar trabalho, dever, obrigação; e abri mão de muita leveza. E já que iniciei este relato para falar de uma demonstração de afeto, daquelas de uma predileção denunciadora e corrupta, da famigerada professora Cid Sana, volto ao acontecimento original, de que desviei por dar-me conta desse outro conflito que ainda sangra metaforicamente. Escrever tem dessas coisas, as cicatrizes falam. Fizemos uma prova. Não me lembro de quê, nem em que época do ano de 1997, 2ª série do 1º grau. Lembro apenas que, alguns dias depois, quando a professora estava prestes a entregar as provas corrigidas, fui por ela chamado à sua mesa. Apavorado, levantei da minha classe e caminhei até lá, antecipando os berros e a humilhação. Mas uma mulher pode sempre surpreender, e ela, com a doçura que não lhe era característica, apenas me mostrou uma questão que eu deixara em branco e me pediu que a respondesse rapidinho. Obviamente, eu, o aluno exemplar, brilhante e inteligente, me distraíra, não deixei em branco porque não sabia a resposta, não fora de propósito. E assim fiz – quem sabe o meu primeiro delito consentido. Recordo ainda que algum colega perguntou o que tinha acontecido, e eu, cúmplice daquela velha senhora considerada maligna por muitos, eu, que era especial e tinha conquistado o afeto da professora, visto o seu lado terno, recebido o seu carinho, inventei qualquer coisa e menti. Até hoje, ainda luto para compreender que não sou especial nem mereço tratamento diferenciado porque sei fingir ser um bom moço. Ainda luto para entender que a realidade não vai me dar uma segunda chance quando eu me distrair. Porque sim, eu vou me distrair.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Cortei os cabelos. Isso não é nada relevante, não fosse meu desejo de relatar algo que aconteceu na semana passada e que envolve cabelos. Não gosto de cortar meus cabelos, são uma parte de mim que me faz falta, sempre. Mas, para viver nesta sociedade, temos que aprender a conviver com a falta nossa de cada dia, que nos move e nos abastece. Quem me conhece sabe que costumo deixar meus cabelos um pouco grandes, quem me conhece há mais tempo deve lembrar que já os tive compridos, para baixo dos ombros. Gosto de andar com os cabelos desgrenhados, ao natural. Mas isso nem sempre foi assim, houve um tempo em que tentei domar os fios, ter cachos perfeitos e essa neurose toda. Até que um dia, não podendo dominar os fios, resolvi deixar que eles próprios escolhessem em que parte gostariam de se dividir, se queriam formar mais cachos ou menos, o volume que com que se queriam apresentar. Meus cabelos viraram quase que uma instituição do meu corpo com vontade própria. Pois bem, ultimamente tenho perdido muitos fios de cabelo. Talvez esteja ficando careca, talvez não. E já decidi que não quero fazer nenhum tratamento para calvície. Meus cabelos são da natureza, se quiserem cair, que caiam; se quiserem branquear, até prefiro. Minhas batalhas ultimamente estão sendo para aceitar o corpo que me coube, suas forças e suas limitações. A angústia do corpo me acompanha há 26 anos. Não significa que eu não cuide, da melhor forma que posso, dos cabelos e do corpo. Feito esse preâmbulo, passo à história que primeiro me motivou. Num desses dias que talvez alguém chame de bad hair day, mas que eu adoro, com os cabelos volumosos e desgrenhados, bem naturais, saí de casa. Para chegar ao ponto de ônibus, preciso caminhar umas 2 ou 3 quadras e cruzar uma rua. Nessa rua, enquanto esperava para atravessar, distraído e pensativo como de costume, passa um carro e apenas ouço “Lobisomem”. Não havia mais ninguém próximo naquele momento, de modo que só posso pensar que o adjetivo tivesse como alvo eu. E digo alvo, pois me parece que a única intenção da pessoa que o proferiu foi de me atingir. Fiquei um pouco incomodado no momento, mas não dei muita atenção ao fato. Um menino que sempre foi esquisito para o outro aprende a ignorar as agressões, e acho que fiz isso tão bem que raramente escuto ou percebo alguém mexer comigo na rua – creio que as pessoas não tenham parado de me insultar, não consigo ser utópico a esse ponto. Mas aquilo ficou martelando na minha cabecinha toda confusa. Lembrei de uma amiga que sempre ficava revoltadíssima quando alguém, principalmente os pedreiros, mexiam com ela na rua. De certo modo, achava isso bobagem, é só ignorar, ou talvez responder com humor. Porém desta vez me incomodou não apenas o fato de eu ter sido agredido à toa, por alguém cujo rosto não tive nem tempo de ver, como também o raciocínio de que eu também muitas vezes agrido o outro sem motivo nenhum. Pois quando vejo alguém passar na rua, eu julgo. Não sou de externar muito o que penso, muito menos oralmente e na rua, para outros desconhecidos. Minhas palavras escritas que me julguem, ou deem minha cara a tapa. Mas eu penso. E por que eu penso coisas desagradáveis para aquele que difere de mim? Ofendendo o outro, ofendo eu. E se ofendem eu, ofendem também o outro e a si próprios. É no outro que nos constituímos, passando pela linguagem. Tem me incomodado essa mania de usarmos a constituição linguística para aniquilar. Então, cortei meus cabelos. Não porque não queira parecer um lobisomem, mas porque não quero que meu corpo seja motivo para o desejo de ofensa do outro. Tiro os meus óculos, pois não uso chapéu, para aqueles que resistem.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Sobre a redução da maioridade penal

Não é recente meu discurso sobre o sistema carcerário e sua (in)utilidade, mas é recente uma forma de raciocínio que me ocorreu. Estudando algumas questões, deparei-me com a moral civilizatória. Esses dois termos são uma boa colocação, casam-se muito bem e tão bem que não acho que precisariam aparecer juntos. A moral existe para ser civilizatória, existe na virtualidade enquanto sistema de regras e de imposições comportamentais para que possamos conviver deixando a barbárie para nossos ancestrais (embora saibamos, talvez não mais tão lá no fundo, que ainda somos bárbaros por natureza). E havendo a moralidade que nos torna seres sociais, e não boçais, haverá também a imoralidade. Mas não é ela que me preocupa, volto a falar disso daqui um pouco. Antes, quero falar da amoralidade, ou seja, daqueles sujeitos que, por motivos vários, recusam-se a participar do jogo de convenções, arbitrárias ou não, a que nos submetemos. São esses os tais que devem ser privados da liberdade e encarcerados, porque representam um real perigo à sociedade. Os imorais, não acho que não devam ser de alguma forma punidos e educados, ou educados e punidos, ou apenas educados -- não tenho uma solução. Mas os imorais participam da sociedade e de seus jogos perversos, seu comportamento não é de negação da moral, é antes da contestação, e encarcerá-los num ambiente talvez até menos hostil do que as ruas, mas que não "regenera" nem "moraliza" ninguém, falando mesmo em termos de senso comum, não é solução. Botar mais gente num sistema que já está mais do que superlotado e é falho não mostra que o Estado está agindo para resolver a questão da segurança pública; mostra apenas que ele simplesmente não tem ideia do que fazer. E agora quero voltar e falar do que me preocupa, conforme declarei algumas linhas atrás. Nesta sociedade, têm me assustado os morais, ou talvez moralistas, aqueles que acreditam que os sistemas de regras aos quais escolheram submeter-se, sua moral, são a verdade (ela existe?) e que ela, essa moral, é a única resposta para a civilização e, portanto, deve ser imposta a toda uma sociedade. Tenho constatado, com grande consternação, que o moralismo pode nos aproximar mais da boçalidade do que o imoralismo. O processo civilizatório necessita de moral. Mas não de uma. As morais são valores construídos e desenvolvidos, constantemente reformulados e modificados. Diante de tudo isso, deixemos os amorais encarcerados, criemos ações para lidar com os imorais e respeitemos as morais, todas elas. E, no caso de não concordarmos com a moral do outro, usemos de argumentos, claro, por que não? Questionar é saudável, conduz às reformulações e evoluções, embora esta palavra seja um pouco problemática (evoluímos?). Mas não usemos de violência e imposições de uma moral antiga, arcaica e ultrapassada, nem trancafiemos nossos jovens, cada vez mais jovens, apenas para que se revoltem mais ainda contra essa(s) moral(is) e a civilização.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Cada louco com a sua mania

Cada louco com a sua mania, dizia uma velha chupando ranho do nariz de outra velha. Ouvi esse ditado escatológico há muitos anos, ditado cuja imagem ainda reverbera nas minhas tão fatigadas retinas acho que por trazer em si uma verdade universal. Mas ele é só um pretexto para eu discutir outra coisa: a imagem. Ah, não, mais um texto sobre a cultura da imagem e blablabla? Não. Eu quero discorrer aqui sobre a imagem da palavra. E de uma palavra em específico: lambuzar. É verídica esta história. Estava eu traduzindo quando uma amiga, também tradutora\revisora, me escreve no Gtalk que acha muito esquisito a palavra 'lambuzar' ser escrita com 'z'. Cá com os meus botões, penso um pouco e aperto alguns deles do meu teclado (que nem é meu, mas da empresa, ó língua inexata!), respondo que não concordo e justifico com o argumento de que a letra 's' é muito mais furtiva e, se 'lambuzar' fosse escrito 'lambusar', daria um efeito visual mais escorregadio. Não demoro muito a acrescentar que a minha loucura é tamanha que filosofo sobre o efeito visual que uma letra causa numa palavra, então ela concorda comigo e diz que acha ótimo. É mais louco o louco ou aquele que diz que ele tem razão? Quanto a isso, ela prefere crer que é o outro. Sempre. Ah, Mário de Sá-Carneiro, pilar da ponte de tédio... Enfim, os meus dez mil pensamentos concomitantes puxam a música "Geni e o zepelim", que conhece muito bem o sentido e os efeitos da palavra 'lambuzar', seja com 's', seja com 'z' — e quem sabe até com 'x', que é uma letra doida o bastante para trazer vários fonemas no seu próprio corpo? Cada louco com a sua mania. Uns jogam pedra na Geni; outros usam, abusam, lambuzam.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Desengasgar

Eu estava numa aula de pós-graduação em Belo Horizonte, onde atualmente resido, quando a professora, sabendo que sou gaúcho, me avisou que tinha pegado fogo numa boate em Porto Alegre e 150 pessoas tinham morrido. Aquilo me pareceu muito distante e ainda brinquei com o fato de minha irmã, que mora em Porto Alegre, estar viajando, portanto eu podia ficar tranquilo. Pouco tempo depois alguns colegas consultaram seus celulares e demais dispositivos e me avisaram que o acidente não tinha sido em Porto Alegre, mas em Santa Maria. Até aí, tudo bem, ninguém de minhas relações próximas estava em Santa Maria. Eu ainda podia ficar tranquilo. Passado mais algum tempo, fomos almoçar num restaurante ali perto, com televisão. É verdade que o que os olhos não veem, o coração não sente. Meus olhos viram imagens da tragédia, aquelas dos rapazes quebrando os muros com o que tinham em mãos na tentativa de salvar alguém, quem quer que fosse. E meu coração começou a sentir. Não pude mais ficar tranquilo. Mesmo assim, tudo ainda estava distante de mim, eram apenas cogitações de rostos cujas feições me eram desconhecidas, cujas histórias não me eram familiares e das quais eu não fizera parte. Até que fui embora. Em casa, acessei meu perfil no Facebook e em pouquíssimo tempo recebi a notícia de que o Fernando Pellin, que fora meu colega durante 3 anos, no ensino médio, lá estivera. Agora morto. E foi assim, com o choque, que tentei me convencer de que aquilo não me atingiria, afinal, nos 3 anos que convivêramos, manhã a manhã numa mesma sala de aula do Colégio Notre Dame Aparecida, em Carazinho - RS, talvez tenhamos conversado umas 3 vezes, eu e ele. Mas eu não podia mais ficar tranquilo. Os rostos passaram a ter feições. E tais feições eram tristes, desconsoladas, perdidas, inconformadas. Seus donos não sabiam -- e na verdade ninguém realmente sabe -- que a vida não faz sentido. Nós é que os construímos. Por 3 anos, Fernando Pellin fez parte dos sentidos que eu construí para minha vida. E eu, que quando tinha 17 anos achava que com 23 a pessoa já era adulta, já tinha vivido alguma coisa, agora sei que isso é ilusão. A verdade é que ninguém nunca vira adulto, não importa a idade. Todos os que estavam naquela boate, tivessem 15, 18, 23, 34 ou 40 e tantos anos, eram apenas pessoas sequiosas de encontrar algum sentido neste caos. E ainda tinham um bom pedaço de ilusão. Aos poucos, fui sabendo que um amigo de uma amiga também falecera, que um ex-colega do meu irmão tinha se salvado, mas estava no hospital, que fulano e beltrano que eram não-sei-o-quê de não-sei-quem também estavam lá. Aí a realidade estapeou com a mão aberta e pesada a minha cara. Com esses golpes, minhas defesas foram cedendo e passei a me permitir sentir que o luto também era meu. Porque, mesmo que indiretamente, parte de mim morreu na boate Kiss, em Santa Maria. Eu, que me julgava inteiro e uno, agora me despeço de um pedaço de mim que se foi. E não volta mais. Nunca mais. Mas outros tantos ainda permanecem, e com eles seguirei vivendo, apesar de. Eu, que vislumbro vários projetos e possibilidades e não quero ter a consciência de que tudo isso é frágil, demasiado frágil. Eu, que todos os dias fecho o peito pra segurar o meu coração que quer crescer e crescer e crescer até ser maior que o mundo, hoje não consegui fazê-lo. Bato furiosamente nas teclas enquanto meu plexo aberto jorra estas palavras na tela do computador. Com minha mania de racionalidade, busco algum resquício de explicação, alguma palavra que possa diminuir os trôpegos soluços, e já quase sem fôlego lembro-me duma grande mãe. Quiçá sirvam as palavras, as minhas, as dela ou de quem forem, como alento às mães e pais e filhos e amigos e conhecidos e desconhecidos que ficaram, pois somos todos humanos e interligados por um tênue fio sem nome. Sim, Clarice [Lispector], é preciso que perdoemos Deus.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Eis que a vida prega umas pecinhas engraçadas. Há algum tempo escrevi um texto chamado "O camaleão daltônico", e ontem meu colega de trabalho, o ilustrador Ricardo Tokumoto, publicou esta tira com o mesmo título e bastante parecida com meu texto, sem que tivéssemos nos comunicado... Segue o link para a tira, onde há o link para o meu texto também!

domingo, 2 de setembro de 2012

Dona Poesia, esta sernhorinha levada... http://www.recantodasletras.com.br/poesias/3862058